A objetividade de “Uma tentativa de retratá-la”, poema de Carlito Azevedo, termina logo no título, em um anúncio quase redundante da impossibilidade do poema, já que retratar alguém é em si mesmo uma tentativa (obviamente frustrada) de alcançar o inalcançável, de apreender um instante que nos escapa a cada investida que fazemos.
O argentino Alberto Manguel uma vez descreveu a literatura como a “musa da impossibilidade”: sempre que tentamos dizer alguma coisa, por mais simples e definida que seja, somente uma sombra dela se transfere de nossa concepção para seu enunciado — e menos ainda de seu enunciado para sua recepção e compreensão. Em uma empreitada assumidamente impossível, portanto, o poema de Carlito Azevedo trafega cambaleante sob essa sombra, percorrendo um caminho que tento aqui retraçar com os meus próprios passos de receptor.
O percurso começa, já meio bêbado, pelo dancing, palavra demodé que sem querer me leva à Lily Braun de Edu Lobo e Chico Buarque: “Abusou do scotch / Disse que meu corpo / Era só dele aquela noite / Eu disse please”. Lily feminista & nietzscheana, de cabelos iluminados pelo ouro. Em um vídeo feito para a revista Modo de Usar & Co., Carlito lê uma versão levemente alterada do poema: em vez da “chuva de ouro nos cabelos”, uma “chuva ácida dos reflexos / íris hipnótica e sentidos desfolhados” — talvez tenha preferido simplificar o verso, talvez os sentidos não estivessem tão desfolhados assim, talvez o ouro…
Talvez, talvez.
Mas “ela” não é Lily, e se no dancing é mais difícil, tentemos agora adentrar a biblioteca, Lancôme e La Celestina na bolsa (ou assim supõe o poeta). Mais uma musa impossível, Melibea, enclausurada pelo pai e depois suicidada ao descobrir a morte do amado Calisto.
Só que estas são as minhas musas, porque o poeta não a alcança nunca. Encontra indícios, claro — um cosmético na bolsa, o ouro nos cabelos — , mas a imagem no retrato não é de Lily nem de Melibea. Ainda na biblioteca, ele se perde em esforços infinitos e fluxos imparáveis; busca um relâmpago e no seu lugar encontra a Jovem Em Um Carro Veloz Falando ao Celular, mulher-figura anônima e/ou inominável dos bancos de imagem do século 21, o que me faz pensar que a tal clausura móvel poderia se referir tanto ao carro quanto ao telefone (dela mas também do poeta, animal shakespeareano que na cama alta soletra palavras de amor — em busca de que? de quem? dela ou de si mesmo? ou será o próprio poema, enfim, o objeto da busca?).
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Onde estará ela? Inteira, nem no dancing, nem nas bibliotecas, nem no carro, nem na cama. Talvez entre as lagartixas de um fractal impossível de Escher, como sugere a frase do poeta favorito cuja identidade o Google me propõe?
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Talvez, talvez.
É a esse ziguezague, para usar outra palavra do poema, que um eu-lírico falível e embriagante se lança, como se pilotasse um carrinho de bate-bate que tromba com a musa impossível (a poesia) a cada pisada no acelerador, empurrando-a sempre para mais longe. Consciente da instabilidade da sua missão, o poema de Carlito Azevedo toma desvios — caminha por espaços e não por pessoas, tateia e explora mais o ato de retratar do que a própria musa, que se esconde oblíqua nas entrelinhas do poema.
Talvez estejamos já muito perto: nem Lily Braun, nem Melibea nem a mulher-figura-dos-bancos-de-imagem, mas algo ou alguém que se esconde nos interstícios, entre a pele úmida de uma lagartixa que desenha outra lagartixa, nessa curva limítrofe que bota em contato uma existência com a outra, as outras.
* Texto produzido para o módulo de Andréa Catropa no CLIPE – Curso Livre de Preparação do Escritor, da Casa das Rosas, em abril de 2017.