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Nada além de uma velha fita cassete

Comentário sobre MPB, protestos e a nostalgia.

Dia 28 de maio de 2017. Uma névoa gelada encobria Copacabana. No palco, Milton Nascimento juntava-se a Caetano Veloso para cantar Paula e Bebeto, o manifesto de amor composto em 1975 (“Qualquer maneira de amor vale a pena”, diz a canção). Era para ser um momento bonito, quase sublime, não fosse o cheiro de velha roupa colorida que pairava no ar. “Diga qual a palavra que nunca foi dita”, eles cantavam, enquanto no rés do chão o que se dizia eram palavras recicladas — justas porém gastas, uma sombra melancólica da utopia carregada por aquela geração.

Gritar novamente “Diretas Já” depois de 30 anos de “democracia” soa quase tão anacrônico quanto os berros dos lunáticos que pedem a volta do regime militar. Quase, ressalto. Não é apenas o slogan reciclado que incomoda, mas a imagem de um Caetano de 75 anos cantando Alegria, Alegria, de 67, ou Milton se esforçando para alcançar o tom de Coração de Estudante, de 83. É quase um déjà vu, como se nos sonhos de hoje também nos esforçássemos para alcançar aqueles tons de 84, para respirar de novo a potência de uma antiga revolução. Só que esse sentimento tem um nome: nostalgia.

“A História se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”, disse Marx 1. O impeachment da presidenta Dilma Rousseff já teve a cara de uma repetição farsesca, a caricatura de um golpe paraguaio. Eu me pergunto: o que foi que aconteceu nesses 33 anos que nos fez incapazes de sonhar novos slogans, novas narrativas? Será verdade que a única reação imaginável ao atual estado das coisas é continuar tocando essa fita cassete já esgarçada?

Não se trata de negar o passado, ainda mais no momento em que ele ressurge como uma sombra aterrorizante (e não pretendo aqui irresponsavelmente negar a força dos velhos hinos). Eleições diretas já! Reforma política já! Desmilitarização da polícia já!

Mas quando eu me vejo em meio a uma pequena multidão que canta mais uma vez “um, dois, três, quatro cinco mil, queremos eleger o presidente do Brasil”; quando vejo o mesmo desenho do Henfil nos cartazes; quando ouço a mesma trilha sonora, percebo que nada está para mudar. Porque se nos últimos 33 anos o Brasil não foi capaz de criar novos ídolos e novas narrativas, o que temos é o sintoma amargo de um mal ainda mais mortífero: a incapacidade de criar novas utopias (e um sinal claro disso é a possível campanha de Lula para 2018).

Esvaziado de utopia, o grito de “Diretas Já” não é mais do que um latido rouco em uma praia enevoada.

Em 1975, Belchior já clamava por rejuvenescimento. “Ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais”. Na batalha narrativa em que vivemos, Belchior está morto mas o chamado sobrevive. Em 2017, eu me vejo ao lado de Clarice Lispector, outra sobrevivente: “A coerência, não a quero mais. Coerência é mutilação. Quero a desordem.”

Manifestação em Copacabana (RJ). Foto: Paulo Fehlauer

* Publicado originalmente na minha página no Facebook em 29 de maio de 2017. Adaptado para publicação neste sítio em 8 de agosto de 2017. Uma versão em inglês do mesmo texto fez parte da exposição HOW TO REMAIN SILENT?, na A4 Arts Foundation, Cidade do Cabo, África do Sul.

  1. MARX, Karl. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo Editorial, 2015.[]

Por Paulo Fehlauer

Escritor & pesquisador & artista visual, mestre em estudos literários pela Universidade Federal de São Paulo. Membro do Coletivo Garapa.

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